Sunday, July 15, 2007

a linguagem como fluxo «alegórico»


A linguagem (aquela que se fala e escreve) nem é só discurso, sintaxe, agregado de conceitos, batalha retórica, «designação», magia, metáfora viva ou morta, etc. É-o, pois é,com suas estruturas, com estranhos restos, encantamento, conversação mais ou menos redundante, diálogo com mira no absoluto e por aí adiante.

Mas não posso deixar de pessoalizar uma teoria ingénua sobre o fluxo alegórico, sinestésico, organizante/desorganizante, e toda a precisão e vaguidão que me acodem quando digo ou escrevo. Sinto-me muitas das vezes a tentar gerir cadeias ambiguas, links vagos, e com eles contruir alguma precisão - se seguirmos «o impulso ekfrásico» (a designação é minha) caminharemos no trilho do «romance», do que é imagéticamente descritivel, dos neo-sofistas greco-romanos, passando por Flaubert até Nabokov. Objectos verbais que se constroem no sentido de que há coisas muito singulares e que elas deixam suspeitas qualquer tentativa de generalização. Se seguirmos, pelo contrário, o impulso abstraccionista teremos cada vez mais tendência em hierarquizar, demarcar, diferenciar e associar redes de palavras já «emancipadas» das imagens - mas o terreno é cada vez mais esquemático, geométrico, explicadista. Pode ser claro nas suas relações, mas há uma dificuldade em gerir palavras tão fortes, esquivas, e vagas (como por exemplo «ser»). Por isso escrevi estas notas como uma espécie de preplexidade de fundo quanto ao uso da linguagem - menos platónica e essencialista (ou conceptual) do que me propõe os filósofos, e menos designativa, descritiva ou mágica, do que gostariam os flaubertianos, os cientistas e os feiticeiros.

Passo à teoria:



  1. A linguagem é indossoluvel das memórias que nestas se vão gerindo, degenerando e deformando.

  2. A memória dispõe e fixa (de forma dura ou mole, consoante a «química») as impressões dos diversos sentidos, com particular predominância para o que vem do som e da imagem. A memória é feita de interfaces, tem um fundo «alegórico».

  3. As palavras são no seu medium uma séries de associações de registos da memória(ou possibilidades destas se recombinarem). Há certamente um filão designativo-mágico que faz equivaler palavras a objectos e a «eficácias» sobre estes. Há igualmente um filão lúdico-exploratório (falar pelo prazer (motivadamente diferente) de falar - o que não é inocente!). E também há o feed-back da linguagem como discurso sobre as memórias que seriam supostamente mais imaculadas, o que torna quer as memórias quer a linguagem mestiças e ainda mais «alegóricas». Não há memórias nem discursos «puros».

  4. As palavras não são nem filhas de defenição, nem caminham para uma essencia que as salve, e salvando-as nos salve a todos, mas são consoante «cada qual» «mais ou menos» precisas ou imprecisas no confronto comunicácional, nos contextos em que cada palavra se torna mais precisa ou imprecisa (recordemo-nos dos debates a partir de Kuhn) - são-nos oferecidas singularidades, arrumações, posições relativas nas quais somos sensíveis ao papel organizativo da sintaxe, etc. - o utilizador pode gerir as palavras pelo seu efeito mais do que segundo uma consciencia meticulosa de cada segmento do discurso.

  5. O sistema neurológico (julgo, velho naif!) orienta-se organizando redes de associações algo hierarquizadas, mas que também são «mais ou menos» abertas, retractivas, sedentas de confirmação ou buscando mudanças, etc., dependendo da propensão de cada utilizador. A velhice, como é òbvio, torna estas estruturas ao mesmo tempo mais complexas e mais conservadoras.

  6. As palavras servem estratégias comportamentais e de sobrevivência, mas são deveras enriquecidas com as disponibilidades «imaginativas» ou poéticas que permitem associar mais, arriscar mais, inventar mais, e mudar de vez em quando as relações habituais (neuróticas) com que filtramos e domesticamos as impressões (informação, sensações, afectos).